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O setor de transporte rodoviário de cargas e o movimento grevista: momento para muita reflexão

Da boleia do caminhão à nau dos insensatos
Por Paulo Roberto Guedes em 18 de setembro de 2018 às 16h10 (atualizado em 24/09/2018 às 10h53)
Paulo Roberto Guedes

São diversos os motivos pelos quais o Brasil tem uma logística que “deixa muito a desejar”. Pesquisas a respeito indicam que o país conta com uma estrutura logística aquém de suas reais necessidades, principalmente considerando o tamanho de sua população e suas dimensões territoriais. Muito inferior a tudo aquilo que se encontra na maioria dos países emergentes e desenvolvidos, a falta de investimentos, a má utilização dos recursos, a confusão regulatória, a confusão institucional, a complexa política tributária, as intermináveis discussões ideológicas e a incompetência parecem caracterizar as atividades voltadas à logística.

O assunto não é novo, vem sendo discutido há muitos anos e agora, em época de eleições, bastante comentado por todos os candidatos. E é bom que assim seja, pois a “falta de investimentos em infraestrutura (geral e de transportes em particular) contribuirá para o altíssimo custo e pela baixa produtividade da produção e da economia como um todo”, foi minha conclusão já em 2005 ao escrever artigo para o jornal Folha de Alphaville (Brasil: Política Monetária ou Política Econômica?). Infelizmente, de lá para cá, muito pouco se fez e as consequências são claramente percebidas.

Uma das consequências, sem dúvida, é que o transporte de cargas no Brasil é caro (56% dos custos logísticos, segundo dados do Instituto de Logística e Supply Chain [Ilos] de 2017) e, sob os pontos de vista da qualidade e da pontualidade, é realizado em condições discutíveis. Demasiadamente dependente do modal rodoviário, que representa mais de 60% do total das cargas movimentadas quando calculado com base na tonelada por quilômetro útil transportado (TKU). Nos Estados Unidos, por exemplo, o transporte rodoviário representa cerca de 30% do total, no Canada, 43%, na Rússia, 8% e na Índia, 50%. O transporte aquaviário nos Estados Unidos é equivalente a 24%, enquanto no Brasil é de apenas 13%. O ferroviário na Rússia é 81%, enquanto no Brasil é de apenas 21%.

Mesmo assim é importante observar que o país, mesmo no modal rodoviário, também é carente. Comparando a quantidade de quilômetros de estradas asfaltadas por sua área territorial (quilômetros de estradas asfaltadas por 1.000 km² de território), o Brasil tem cerca de 186 km de estradas asfaltadas por 1.000 km². A China tem 400 km, os Estados Unidos quase 700 km, a Índia mais de 1.000 km, a Espanha supera os 1.300 km, a França mais de 1.800 km e o Japão tem mais de incríveis 3.200 km de estradas asfaltadas a cada 1.000 km² de território, segundo dados do Anuário Exame de Infraestrutura.

Esse cenário tem como uma de suas principais causas a falta de investimentos no setor, pois conforme demonstram estudos da Consultoria Inter.B, realizados para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as quedas nas taxas de investimentos em transporte (todos os modais) foram regras nos últimos anos: de 1,08% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2010, foi para 0,96% em 2013 e 0,59% do PIB em 2017, com expectativa de alcançar 0,61% em 2018! Pior do que isso só o fato de que muitos dos investimentos realizados são discutíveis quando analisados sob o ponto de vista da integração, da qualidade, da oportunidade e de seu custo.

Os impactos são conhecidos. Desde a baixa qualidade da maioria das estradas brasileiras, passando pelos altos índices de roubo de cargas e de acidentes, pelos desnecessários dispêndios oriundos do excesso de tempo operacional, pelo excesso de burocracia diante do exagerado número de órgãos intervenientes (e onde “todos mandam”’) e da alta idade média da frota, parece que tudo conspira para que o transporte rodoviário de cargas, mesmo preponderante na matriz de transporte, ainda exerça suas funções com razoável grau de ineficiência e altos custos.

A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) tem registrado um total de 1,82 milhão de equipamentos, dos quais 65% são veículos com tração. Os 35% restantes são reboques e semirreboques, isto é, precisam estar acoplados aos veículos com tração. Os caminhoneiros autônomos, por sua vez, são proprietários de 46,3% da frota com tração, o que lhes garante exercer papel essencial nas atividades de transporte de cargas por rodovia no Brasil, pois é o equipamento de tração que de fato transporta a carga, seja sobre sua própria carroceria (caminhão) ou puxando um equipamento sem tração (reboque ou semirreboque).

Essa estrutura, com quase a metade da propriedade dos veículos de tração nas mãos de caminhoneiros autônomos, foi construída ao longo do tempo, na medida em que as empresas e cooperativas de transporte, os operadores logísticos e os próprios embarcadores, para diminuírem seus custos fixos (equipamentos, motoristas contratados via CLT e serviços de compras e de manutenção) e ficarem menos vulneráveis às oscilações de mercado e da sazonalidade, foram terceirizando, sempre que possível, essas atividades, em alguns casos apenas contratando o caminhoneiro e seu veículo com tração (cavalo-mecânico ou caminhão) e em outros também incluindo o veículo tracionado (carreta e semirreboque). O que se vê hoje é que a maioria das empresas de transporte ou operadores logísticos atua com frota própria e de terceiros ao mesmo tempo, sendo que a participação de cada uma delas no total varia em função de estratégias empresariais ou simples análises de trade-off.

Em operações mais específicas ou até mesmo consideradas estratégicas pelo embarcador, nas quais há a necessidade de se utilizar carretas especiais e muitas vezes somente dedicadas àquelas operações, o interesse do caminhoneiro autônomo em ter a sua propriedade é muito menor, posto que essas especificidades não favorecem a flexibilidade exigida, uma vez que eles precisam estar, o maior tempo possível, fazendo seus equipamentos rodarem com carga. Isso, e o custo maior de um equipamento especial, explicam em parte porque, ainda segundo os registros da ANTT, 78,3% dos equipamentos sem tração são de propriedade das empresas de transporte e apenas 21,7% estão nas mãos dos caminhoneiros autônomos.

É óbvio que há outros motivos para que os serviços de transporte de carga rodoviário fossem terceirizados, e um deles é a alta produtividade da frota de motoristas autônomos quando comparada com a produtividade da frota na mão de empresas que contratam motoristas como empregados via CLT. Não é uma regra geral, mas quem estuda ou trabalha no setor sabe bem quais as diferenças, vantagens e desvantagens entre um e outro. Aliás, foi essa alta produtividade do autônomo que deu, ao transporte rodoviário de cargas, seu merecido lugar de destaque, já que para algumas atividades, produtos, setores econômicos ou regiões, e até por falta de outros modais, o transporte rodoviário de cargas tornou-se imbatível. Não é à toa que ainda se diz que “sem caminhão o país para”.

Enquanto os volumes transportados eram suficientes para fazer com que toda essa frota de autônomos e de empresas rodasse quase que o tempo todo com cargas, as reclamações eram pontuais, menos intensas e limitavam-se a alguns setores mais afetados. E quando os custos aumentavam (quaisquer deles), a alternativa era sempre repassar os custos para o contratante, por meio do aumento do preço do frete, fosse ele cobrado de uma empresa de transporte ou diretamente de um embarcador. Com demanda por serviços de transporte maior que a oferta, esses problemas eram sempre minimizados.

Porém, como é de se presumir, na medida em que os volumes de cargas para transporte foram diminuindo, as empresas, sempre que possível e como primeira providência, deixavam de utilizar os autônomos e privilegiavam a frota própria. Até certo ponto, uma medida administrativa aceitável. A ociosidade da frota e todos os custos fixos decorrentes ficavam apenas nas contas dos autônomos. Tudo se modifica, entretanto, quando a demanda diminui ainda mais e essa ociosidade e custos fixos correspondentes começam a afetar também as empresas de transporte, obrigando-as a diminuir o aproveitamento da própria frota. Estudos realizados pelo Ilos mostram que em 2017 foram movimentadas 1,64 trilhão de TKUs em todos os modais, ou seja, 2,7% menos do que 2014. No modal rodoviário essa queda foi ainda maior: menos 9,7% entre 2014 (1,13 trilhão de TKUs) e 2017 (1,02 trilhão de TKUs). Dados do instituto indicam que nos últimos três anos, entre 2015 e 2017, enquanto o PIB brasileiro decresceu 5,95%, a demanda por transporte rodoviário de cargas teve queda de 9,61%!

E se as empresas de transporte passaram a ter problemas, imagine-se o que aconteceu com os autônomos, que têm no custo fixo (seu próprio caminhão) seu principal componente de custos. A recessão brasileira e a crise econômica dos últimos anos não só aumentaram a ociosidade do setor de transporte de carga como também inibiram o automático repasse de custos para os embarcadores e consumidores finais. A crise afetou a todos.

Com certeza a vida de caminhoneiro no Brasil ficou ainda mais dura e difícil. Mas como é a vida de todo brasileiro. Principalmente agora, pois não é à toa que se contabilizam 27,7 milhões de pessoas sem emprego ou subutilizadas: 12,7 milhões de desempregados e mais 15 milhões de pessoas que gostariam de trabalhar mais ou desistiram de procurar emprego. Esse número, calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativo ao primeiro trimestre de 2018, é o maior desde 2012, quando se iniciou esse tipo de pesquisa. Vida difícil essa do brasileiro, caminhoneiro ou não!

É óbvio que a culpa dessa quase desgraça não é somente deste governo, embora ele possa ter contribuído muito para isso. O problema, agravado pela crise iniciada a partir do final de 2013, existe há décadas e é fruto da incompetência, inação, desconhecimento e até um pouco de má-fé das classes dirigentes que, ao longo de muitos anos, jamais deram a devida importância ao setor. Como já defendido em artigo publicado na Revista Tecnologística nº 221 (Pacto Nacional pela Multimodalidade), escrito em conjunto com o presidente executivo da Associação Brasileira de Operadores Logísticos (Abol), César Meirelles, “é chegado o momento para que o Brasil transforme os diversos diagnósticos, estudos e planos sobre infraestrutura logística em concretas e efetivas realizações e, em especial, aqueles voltados ao desenvolvimento da multimodalidade, o caminho mais inteligente para aproveitar todas as vantagens de cada meio de transporte. É momento de se buscar a integração entre os diversos atores da cadeia produtiva, como única forma para crescimento e desenvolvimento de todos, e não só daquele setor com maior poder de pressão”.

De fato, o Brasil precisa melhorar em quase todas as atividades que caracterizam a vida em sociedade. Como já salientado, a incompetência, as mazelas, os roubos, a corrupção, a imoralidade, a falta de ética, o descaso, a desfaçatez e tudo o mais são algumas das características que imperam no cenário brasileiro atual. O transporte rodoviário de cargas é mais um dos setores que sofre com essa “desorganização total” que tomou conta do país.

Mas, por mais justas que sejam as reivindicações feitas pelo setor, e assim poderiam fazer quase todos os demais setores que compõem a sociedade brasileira, acredito que este não é o momento de mais paralisações ou movimentos grevistas. Muito menos de fazer valer regras que há muito deixaram de fazer parte das políticas que caracterizam as sociedades modernas e mais desenvolvidas, tais como tabelamento de fretes, reserva de mercado, desoneração de impostos ou isenções tributárias sem suas devidas contrapartidas para a sociedade como um todo. Principalmente considerando que temos um governo “de joelhos” e esperando seu “tempo terminar”. Pelo contrário, o momento é de convergência e de elaboração de propostas que equacionem problemas estruturais existentes há décadas, estejam voltadas ao interesse comum e resolvam o problema da economia brasileira.

Não sei se há outra forma fora da democracia para resolver esse imbróglio, mas com certeza não é utilizando da força ou do aproveitamento da fragilidade na qual se encontra a maioria de nossas instituições, em especial os atuais poderes constituídos, que serão encontradas as respostas adequadas.

Embora a maioria dos brasileiros, caminhoneiros ou não, ainda continuará sofrendo os impactos negativos da frágil situação em que se encontra o Brasil, a solução somente será encontrada pela via política, mas desde que praticada com bom senso, sem preconceitos, preservando a liberdade e o direito de todos e, principalmente, sem exigências impossíveis de serem atendidas.

 

O setor de transporte rodoviário de cargas e o movimento grevista: momento para muita reflexão

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