O transporte na perspectiva constitucional
O transporte é uma das atividades mais antigas da humanidade, seja de pessoas, seja de cargas, sem ele os negócios são inviabilizados e as riquezas não circulam.
Trata-se de uma atividade de interesse público relevante, bem como apresenta em cada um dos modais riscos que lhes são próprios, razão pela qual é fortemente regulado pelo Estado, como determina o artigo 178 da Constituição Federal.
O modal rodoviário, na atualidade, é o meio de transporte de cargas predominante no Brasil, responsável pela movimentação de cerca de 65% dos bens, insumos e mercadorias ao longo do nosso país de extensão continental, e ao tempo que abastece a cadeia logística nacional também propicia o comércio exterior.
Sujeito a um rigoroso conjunto de normas, entre as quais estão as regras de comportamento e circulação no trânsito, é fiscalizado por uma multiplicidade de agentes estatais sob diferentes vertentes.
Nesse sentido, o CTB (Código de Trânsito Brasileiro), que instituiu o Sistema Nacional de Trânsito, estabelece competências concorrentes e responsabilidade fiscalizatória compartilhada entre todos os entes da federação, União, Estados e Municípios, visando a garantir “a segurança, a fluidez, o conforto, a defesa ambiental e a educação para o trânsito”.
Ressalte-se que a segurança viária, desde a Emenda Constitucional 82/2014, caracteriza-se como um direito de todos e um dever constitucional atribuído ao Estado para fortalecer a preservação da ordem pública e a incolumidade das pessoas e seu patrimônio nas vias de tráfego.
Essa é a premissa que se sustentou o julgamento dos Recursos Especiais 1908497/RN e 1.913.392/MG, no final de 2024, sob o rito dos recursos repetitivos, oportunidade em que Superior Tribunal de Justiça firmou a seguinte tese:
Tema 1.104: "O direito ao trânsito seguro, bem como os notórios e inequívocos danos materiais e morais coletivos decorrentes do tráfego reiterado, em rodovias, de veículo com excesso de peso, autorizam a imposição de tutela inibitória e a responsabilização civil do agente infrator".
O Excesso de Peso, o CTB e a Resolução Contran 882/2021
Segundo determina o artigo 99 e 100, do CTB, todo o veículo circulante nas rodovias deve observar certos critérios relacionados ao seu peso, sujeito à multa pecuniária e retenção do veículo, nos termos do artigo 231 do mesmo diploma legal.
As regras sobre o peso são estabelecidas na Resolução Contran 882/2021 que define diversos parâmetros, sobretudo peso por eixo, peso bruto total (PBT) , peso bruto total combinado (PBTC), assim como disciplina a emissão de autorização especial (AE) quando cabível.
O DNIT disponibiliza para consulta pública dados sobre os infratores do Plano Nacional de Pesagem (PNP) por região, unidade federativa, enquadramento da multa relacionada ao excesso de peso, se pessoa física ou jurídica, a situação da multa (paga ou pendente), assim como a quantidade e ano em que aplicada, revelando o panorama nacional sobre o tema e uma alarmante realidade[i].
Nesse contexto, o Ministério Público Federal sustenta que desde 2014, quando ocorreu a suspensão do sistema nacional de pesagem, houve uma deterioração significativa da malha viária, recomendando recentemente ao Ministério dos Transportes a imediata instalação de um novo sistema nacional de pesagem nas rodovias federais, a revisão da legislação e dos valores das multas, pois afirma serem irrisórias para compensar os gastos com manutenção e conservação.
De fato, segundo aponta a Pesquisa “CNT Rodovias 2024”, da Confederação Nacional do Transporte, dos 111.853 quilômetros de rodovias federais e estaduais avaliados, 67% foram classificadas como “regular, ruim ou péssimo” por apresentarem algum tipo de problema na pavimentação, sinalização ou na geometria[ii].
A atuação do Ministério Público Federal e a Ação Civil Pública como instrumento
Diante desse cenário, o MPF ajuizou, ao longo dos últimos anos, inúmeras ações civis públicas (ACP).
Fundamenta, com base em variados estudos, que o excesso de peso das cargas transportadas provoca diferentes impactos: acelera o desgaste da pavimentação, compromete o funcionamento adequado dos veículos de carga, coloca em risco a segurança viária, impacta negativamente o meio ambiente e distorce o equilíbrio concorrencial, pois reduz ilegitimamente custos operacionais, causando danos materiais ao patrimônio público e à concorrência e danos morais à coletividade.
Da mesma forma, sempre defendeu e requereu a fixação de multa (as denominadas astreintes) visando a inibir, a desestimular o comportamento reincidente, para o fim de que todo o transportador ou embarcador, réu da ação, seja multado em valores compatíveis com a sua capacidade econômica, toda a vez que flagrado transportando carga acima do limite de peso permitido.
A recente decisão do STJ: Tema 1.104
O entendimento fixado no tema não é novidade. À medida que os recursos nas ações civis públicas propostas pelo MPF chegaram ao Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência foi se firmando, consolidando-se no final do ano passado com o julgamento dos recursos especiais 1908497/RN e 1.913.392/MG sob o rito dos recursos repetitivos.
Isso significa dizer que a decisão proferida no julgamento desses recursos, chamados de representativos da controvérsia de múltiplas ações e recursos em trâmite por todo o país, cria um efeito vinculante, devendo a tese firmada no Tema 1.104 ser aplicada nos juízos de primeiro grau e nos Tribunais em segundo grau, restando espaço apenas para apuração dos valores indenizatórios e ressarcitórios, além da fixação da multa acima mencionada.
O STJ, portanto, consolidou o entendimento de que além da multa administrativa aplicada nos termos do artigo 231, do CTB, também são cabíveis, pelo Poder Judiciário, a fixação de multa inibitória para desestimular a prática infracional e as indenizações por danos materiais e morais, ressaltando a dispensa de comprovação específica, bastando, assim, a prova da reiteração da conduta de transportar em desacordo com as normas aplicáveis.
As consequências práticas
Após a decisão do STJ, o MPF tem ajuizado novas demandas. Um exemplo recente é a Ação Civil Pública promovida em face da maior produtora mundial de proteína, como amplamente divulgado nos principais jornais do país.
Nessa demanda, o MPF requereu liminarmente multa de R$ 15.000,00 para cada nova infração com veículos com excesso de peso, sejam eles veículos próprios ou de terceiros, o que já foi deferido pelo juízo da causa, bem como postulou pela condenação, em aproximadamente de R$ 15 milhões de reais, em danos materiais e morais.
Outras importantes implicações
A consolidação do entendimento do STJ no Tema 1.104 tem outras implicações consideráveis para além das indenizações milionárias a título de danos materiais e morais.
É regra nos seguros de cargas, por exemplo, que o excesso de peso, quando efetivamente contribui para o sinistro, enseja a exclusão da indenização securitária, por agravamento intencional do risco objeto do contrato de seguro.
Além disso, qualquer fato omitido ou não informado que possa alterar o estado do risco aceito pela Seguradora e influir no sinistro também torna-se fato agravador a excluir a indenização.
Outra previsão comum nas apólices dos seguros de carga, sobretudo às de responsabilidade civil do transportador rodoviário de cargas e responsabilidade civil ambiental transporte é o cumprimento das disposições que disciplinam o transporte de carga por rodovia, cláusula aberta que tem sido invocada pelos Tribunais para confirmar a exclusão de indenização em diversas situações.
Para além disso, numa visão macro, há não como negar implicações de natureza ética, vinculadas às diretrizes do ESG. Em dias atuais, a governança corporativa responsável e a gestão comprometida com valores sociais, ambientais e concorrencial, entre outros, é esperada, valorizada e distintiva entre os atores econômicos.
O dano reputacional e a perda da capacidade competitiva, sobretudo quando se nota um desalinhamento entre o discurso e a prática, podem acarretar um prejuízo ainda maior do que as indenizações multimilionárias estabelecidas numa ação civil pública, comprometendo a própria longevidade da empresa, afinal já dizia Benjamin Franklin há três séculos que “o bem feito é melhor do que o bem dito”.
Sem desconsiderar os inúmeros desafios que envolvem essa milenar e absolutamente importante atividade de transportar, é chegada a hora de empoderar o compliance, adotar boas práticas empresariais, fortalecer os processos, inclusive na escolha de terceiros, eis que ao que tudo indica, concordando-se ou não com a decisão no Tema 1.104, é o único caminho viável para garantir a efetiva mitigação de riscos, sobretudo os financeiros, e colher legitimamente a prosperidade.
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[i] Disponível em https://www.gov.br/dnit/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/painel-de-acompanhamento-dos-infratores-do-plano-nacional-de-pesagem-pnp#:~:text=Painel%20de%20acompanhamento%20dos%20infratores%20do%20Plano%20Nacional%20de%20Pesagem%20%E2%80%93%20PNP,-Compartilhe%3A&text=Neste%20painel%2C%20%C3%A9%20poss%C3%ADvel%20identificar,canceladas%20durante%20o%20processo%20administrativo. Acesso em: 29.abr.2025.
[ii] Disponível em https://cnt.org.br/documento/cbf59b9e-fd1a-41fc-b230-172c4dc42100. Acesso em: 29 abr.2025.
*Rosa Malena Gehlen Peixoto de Oliveira. Especialista em Compliance pela PUC/MG; em Direito Empresarial pelo UniCuritiba; em Direito Processual Civil, pela PUC/PR; e em Direito Aplicado pela EMAP/PR. Certificada em Gestão de Riscos, ISO 31000 Risk Management Professional C-31000, pelo G31000 Risk Institute. Membro da AIDA - Associação Internacional de Direito de Seguro, seção Brasil. Membro do CIST – Clube Internacional de Seguros & Transportes. Membro da Comissão de Direito Securitário, da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná. Advogada e Corretora de Seguros. Diretora Técnica na Artus Consultoria e Corretora de Seguros.