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O transporte aquaviário brasileiro

Por Adriano Murgel Branco em 6 de maio de 2015 às 12h30 (atualizado às 12h34)
Adriano Murgel Branco

Quem quer que olhe o “mapa-múndi” com atenção observará a quantidade de água que circunda e liga os continentes, sugerindo o deslocamento de pessoas e de cargas de um ponto a outro. Mas observará ainda que, cortando os continentes, há uma densa malha de rios e lagos que convidam à navegação.

Olhando, porém, o mapa do Brasil, descortina-se outro conjunto de caminhos navegáveis, seja representados pela costa, em seus 8.500 km de extensão, seja pela rede de cursos d’água ligando os seus vários territórios entre si e com os seus vizinhos continentais. São 30.000 km de vias naturalmente navegáveis, podendo chegar a 60.000 km se incluídas as águas flúvio-lacustres, segundo nos ensina José Ademir Menezes Allama, em seu artigo A Terceira Onda da Hidrovia Brasileira, acrescentando que o País aproveita – e muito mal – apenas 13.000 km desse total.

Na história mundial registra-se a prática da navegação desde alguns milênios atrás, em busca de melhores terras e melhor qualidade de vida ou de ampliação de domínios, percorrendo rios e lagos, navegando ao longo da costa ou atravessando os mares. Os egípcios dedicaram-se à navegação fluvial, transportando cargas e pessoas através do rio Nilo, unificando o país e desenvolvendo o comércio e a indústria. E, numa visão de uso múltiplo das águas, aprenderam a dominar as enchentes em favor da agricultura.

A partir do domínio da navegação, egípcios, gregos e fenícios tornaram-se potências marítimas do mundo, inclusive através das guerras.

Ao longo da história do mundo há muitas referências a guerras que foram vencidas em batalhas navais, como a de Waterloo, em que Napoleão conheceu a derrota e, aqui entre nós, a do Riachuelo, em que o Brasil venceu o Paraguai. Mas constituirá uma exposição paralela a referência a tantas e tantas guerras que se desenvolveram sobre as águas dos oceanos e dos rios.

Mencionando o Brasil, não foi por mero acaso que aqui chegaram os portugueses, singrando os mares. E aqui encontraram nativos que se deslocavam pelos rios, em canoas e jangadas. Também não foi por acaso que exploradores de riquezas naturais e missionários desbravaram as terras brasileiras valendo-se da navegação fluvial, ampliando enormemente os domínios portugueses; e também não foi ao acaso que os descobridores logo se deram conta dos riscos de invasão pela bacia amazônica, tratando de defendê-la, através de incursões como a de Pedro Teixeira, que saiu de Belém em 1637 chegando à cidade de Quito (Equador) pelos rios Amazonas e Solimões.

A história da navegação é de uma riqueza inenarrável. Desde a referência a episódios inacreditáveis, como a viagem em jangadas, por remanescentes de uma luta religiosa no Peru, em direção à Polinésia, atravessando 4.000 km de oceano, até o esforço de formação de navegadores, a que se dedicou a famosa Escola de Sagres, e a dedicação de brasileiros ao conhecimento da construção de navios, que resultou no lançamento do maior navio do mundo em 1663 e na implantação do Arsenal da Marinha, em 1763, dando origem à fabricação de navios de cabotagem e de grande percurso.

A vinda da família real para o Brasil, em 1808, com a consequente abertura dos portos, ensejou grande expansão do transporte aquaviário. Mas o segundo grande impulso à navegação veio com a invenção do navio a vapor, a partir do início do século XIX. Seus reflexos no Brasil foram imediatos, como a implantação da primeira linha a vapor ligando o Rio de Janeiro a Niterói, e a concessão, em 1826, da primeira linha de cabotagem (flúvio-marítima) entre o Rio de Janeiro e Belém, com escala na Bahia, Pernambuco, Ceará e Maranhão.

Entre 1850 e 1860, várias concessões de navegação foram dadas como, por exemplo, as da ligação de Montevidéu a Cuiabá, pelos rios Uruguai e Paraguai, e do Rio de Janeiro a Montevidéu, já utilizando embarcações com casco de aço. Ademais, o ciclo da borracha veio a intensificar a navegação amazônica. Mas foi também a partir dessa época que foram implantadas as primeiras ferrovias brasileiras, ora complementando trajetos hidroviários, ora concorrendo com as hidrovias.

Na primeira República surge o primeiro plano integrado de transportes, visando o aproveitamento dos grandes rios nacionais como vias naturais de navegação (São Francisco, Araguaia, Tocantins, Guaporé, Madeira, etc.). Previram-se articulações com as malhas ferroviárias Norte/Nordeste e Centro/Sul. Mas a expansão ferroviária colocou em segundo plano as interseções fluviais.

Nas primeiras décadas do século XX, surge com grande impulso o transporte rodoviário, apoiado pelo lobby das indústrias de veículos e de petróleo e bem recebido pela população que via, no novo modo, a expansão da modernidade. Convertida em meta nacional, a implantação do sistema rodoviário – a ponto de o presidente da República Washington Luiz declarar enfaticamente que “governar é abrir estradas” –, não faltaram recursos para compor a malha de rodovias, em detrimento dos investimentos hidroviários e ferroviários.

Essa é, em rápidas pinceladas, a história dos transportes aquaviários no Brasil, até 1930, segundo importantes relatórios, como Caminhos do Brasil, da Empresa de Planejamento de Transportes; Estradas D’Água, da Antaq; Diretrizes da Política Nacional de Transporte Hidroviário, do Ministério dos Transportes, dentre outros, secundados por trabalhos não menos importantes, como o de Geraldo Luis Lino, Lorenzo Carrasco e Nilder Costa – A Hora das Hidrovias –, precioso e muito completo livro sobre o tema.

A partir de 1930, mais esperanças surgiram em favor do transporte hidroviário, graças a conceitos novos e ao esforço de modernização e industrialização do país. Mesmo assim, o rodoviarismo praticamente anulou os transportes hidroviário e ferroviário, como veremos adiante, apesar da ampla malha de hidrovias, da longa costa marítima e, sobretudo, da experiência de vários séculos de operação aquaviária que deram ao Brasil um impulso notável.

Construindo hidrovias

A tendência natural dos navegadores sempre foi a de utilizarem cursos d’água sem obstáculos, assim oferecidos pela natureza. Apesar disso, são muitos os exemplos de canais abertos pelo homem, desde a antiguidade, ligando cursos naturais entre si ou aos oceanos. No século XIX a.C., por exemplo, os egípcios ligaram um canal tributário do Rio Nilo ao Mar Vermelho.

Os chineses, por seu turno, construíram o maior canal de navegação do mundo, com 1.800 km, entre os séculos V a.C. e VII d.C.

Na Europa, os grandes rios foram interligados por canais, para formar uma extensa rede de navegação. A Holanda é o país mais dotado de canais em relação à sua extensão territorial. Hoje, o continente europeu dispõe de 37.000 km de hidrovias, sendo 40% de canais artificiais.

Mas, em outras regiões, o homem concebeu redes hidroviárias ligando lagos, rios e canais, como foi a implantação do canal Erie, nos Estados Unidos, entre 1798 e 1825, com 600 km de extensão, unindo o rio Hudson ao lago Erie.

É, portanto, uma história de milênios essa “engenharia hidroviária” que permitiu o transporte de pessoas e de cargas, por meio da navegação, unindo regiões e povos. Deveria ter constituído o grande modelo dos sistemas de transporte em todo o mundo, ao invés do abandono a que foi relegado, a partir do século XIX.

Mas, no entorno da década de 1930, as obras destinadas ao uso das águas tomaram rumos diversos, mais planejados. Expandiu-se o conceito do uso múltiplo das águas, balisando toda e qualquer ação envolvendo seu aproveitamento. Assim, obras de regularização dos rios, por exemplo, destinadas à moderação das enchentes e das secas, passaram a ser planejadas com a finalidade de produzir energia elétrica, de tornar navegáveis os rios regularizados por meio de barragens, aplicando-se-lhes eclusas, de assegurar a irrigação e a piscicultura, o turismo, etc.

Um dos melhores exemplos de planejamento assim integrado veio do empreendimento do Vale do Tennessee, através da TVA – Tennessee Valley Authority, que, engajada no grande programa de desenvolvimento dos EUA, conduzido pelo presidente Franklin Delano Roosevelt (1933 -1945), dedicou-se a todas aquelas atividades ligadas aos cursos d’água, começando pelo reflorestamento das margens dos rios, cujas árvores, convertidas em lenha e em carvão, tinham sido o suporte da introdução do uso da máquina a vapor em toda aquela região do país. Produzindo eletricidade, facilitando a navegação, incentivando a agricultura, o turismo e piscicultura, a TVA não só gerou milhares de empregos em difícil momento da economia, como investiu em várias áreas da infraestrutura, necessária à recuperação econômica.

A filosofia da TVA foi muito bem recebida entre os técnicos brasileiros, tendo dado origem à hidrovia Tietê-Paraná. Foi o engenheiro Catullo Branco, da Inspetoria de Serviços Públicos do Governo do Estado que, a partir de 1940, começou a idealizar amplo aproveitamento do rio Tietê, com vistas principalmente à produção de energia elétrica, navegação e controle das cheias. Em 1941, Catullo foi aos EUA para conhecer a TVA, trazendo de lá copiosa documentação. E, a partir da década de 1950, o governo estadual iniciou as obras do grande plano, que culminaram em 1998, com a implantação de uma hidrovia de 2.400 km, onde hoje se transportam 6.000 toneladas de carga por ano (uma quarta parte da navegação nacional) e cujo Plano Estratégico de Desenvolvimento, de 2003, prevê o crescimento dessa carga de 0,5 % da matriz estadual, para algo em torno de 6%, até o ano de 2020.

Ao desenvolver o Plano Estratégico, o governo paulista motivou a Transpetro a planejar o uso da hidrovia para o transporte do etanol, do que resultou um projeto moderno, destinado ao transporte de seis milhões de t de álcool, equivalentes a 3,3 milhões de toneladas X quilômetro, elevando, assim, o movimento atual de 1,6 milhão de TKU/ano para cerca de 5 bilhões de TKU/ano (sem contar o crescimento vegetativo da demanda no período).

Pode-se dizer que isso é só o começo, pois a gestão do transporte hidroviário em moldes modernos, como fará a Transpetro, permitirá não só aumentar a contribuição da hidrovia Tietê-Paraná (que hoje se chama Hidrovia Catullo Branco, em homenagem ao seu idealizador), que se admite ter capacidade para 20 milhões de t, como regularizar e melhor aproveitar os demais rios do estado, como os limítrofes Paranapanema e Grande, além de outros igualmente importantes, como o Paraíba, o Ribeira de Iguape e o Mogi.

Lamentavelmente, enquanto se comprovava a importância do uso múltiplo das águas no estado de São Paulo, o governo central construiu barragens sem eclusas, que definitivamente impediram o avanço da navegação fluvial: Itaipu, no rio Paraná; Água Vermelha, no rio Grande, e São Simão, no rio Paranaíba. Muitas outras barragens sem eclusas foram implantadas no Brasil, sendo o caso da usina de Tucuruí, que cortou a navegação do rio Tocantins, o exemplo mais gritante. E, ao que se vê, erros semelhantes estão programados nas hidrelétricas da Amazônia, tudo isso ao arrepio do artigo 143 do Código das Águas, de 1934, que determina:

• Em todos os aproveitamentos de energia hidráulica serão satisfeitas exigências acauteladoras dos interesses gerais – a) da alimentação e das necessidades das populações ribeirinhas; b) da salubridade pública; c) da navegação; d) da irrigação; e) da proteção contra as inundações; f) da conservação e livre circulação do peixe; do escoamento e rejeição das águas.

O transporte aquaviário brasileiro

Por que a hidrovia?

Anteriormente foi traçado um brevíssimo histórico do transporte aquaviário que, através de milênios, ofereceu à humanidade condições de deslocamento, de desbravamento e até de guerra, valendo-se de aperfeiçoamentos do engenho e arte da construção naval. E foi o surgimento da máquina a vapor, inventada por James Watt, por volta de 1765, que revolucionou a indústria, o transporte ferroviário (em 1804), consolidado por George Stephenson, em 1814, e a navegação, a partir da primeira viagem de Robert Fulton, em 1807.

Os avanços tecnológicos nos transportes alcançaram, portanto, de maneira quase concomitante, os transportes ferroviário e o aquaviário, que foram muitas vezes projetados de forma complementar, tal como ocorreu aqui mesmo, por volta de 1910, no rio Mogi: a Companhia Paulista de Estradas de Ferro operava, também, um sistema de navegação fluvial, enquanto a ferrovia Santos/Juquiá se conectava a uma ampla rede fluvial, com 350 km de rios e 720 km de itinerários. Mas em pouco tempo essas operações conjugadas foram sendo abandonadas, ganhando impulso a implantação de ferrovias, que se tornou um grande negócio privado em todo o mundo.

A seguir, já na primeira metade do século XX, consolidou-se a indústria automobilística, apoiada por investimentos de grande monta em rodovias, sob o patrocínio dos governos que, assim, ofereceram os caminhos adequados para a circulação de veículos automotores. Contribuiu para isso a produção do petróleo que, valendo-se de contratos leoninos com os países mais pobres, alcançou preços baixos para o combustível dando origem, ainda, à exploração de impostos sobre ele, destinados à implantação da infraestrutura. Basta recordar que o preço do barril de petróleo estava na casa de um ou dois dólares até o início da década de 1970 (quase cem vezes menor do que hoje), para se ter uma ideia das condições de avanço da nova tecnologia.

Ao mesmo tempo, outros fatores influenciaram as decisões, além do franco subsídio público às infraestruturas rodoviárias. Por exemplo, a flexibilidade do transporte por caminhões, ônibus e automóveis, que se realizava de porta a porta, enquanto linhas férreas e, especialmente, cursos d’água não apresentavam tal facilidade. Por outro lado, enquanto o transporte fluvial e ferroviário dependia quase sempre de operação em comboios, no caso do rodoviário tornou-se possível ter uma “empresa” de um veículo só.

Enfim, a expansão do rodoviarismo estagnou – quando não anulou – os transportes por ferrovia e hidrovia, como se verificará adiante, com as honrosas exceções de praxe. Mas o grande equívoco nas avaliações da importância de cada modo de transporte tem sido as comparações de custos, em que se ignoram não só os investimentos feitos na infraestrutura rodoviária e negado nas congêneres ferroviária e aquaviária, como não se avaliam corretamente os custos sociais e ambientais envolvidos em cada caso.

Essa avaliação comporta discussões doutrinárias e apreciações específicas. O ponto de partida está na divergência cada vez maior entre economistas no que se refere à medida do PIB como fator único de sucesso dos países e a equação custo/benefício como a forma de medir resultados. A economista Hazel Henderson, autora do livro Mercado Ético (Editora Cultrix), é uma crítica severa dos economistas que veem no PIB uma medida única de sucesso de um país. Para ela, é preciso considerar na contabilidade nacional o custo social da realização de determinadas atividades. O modelo econômico atual, para ela, não se adapta à realidade das necessidades dos cidadãos:

“A economia tradicional é hoje amplamente vista como um código de fonte imperfeito entranhado nos discos rígidos das sociedades, replicando a insustentabilidade: as altas súbitas, as falências, as bolhas, as recessões, a pobreza, as guerras comerciais, a poluição, a desintegração das comunidades e a perda da cultura e da biodiversidade. Cidadãos de todo o mundo estão rejeitando este código fonte econômico imperfeito e os seus sistemas operacionais, como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e os bancos centrais autoritários.”

A maneira de expandir a avaliação econômico-financeira é acrescentar os custos e benefícios indiretos decorridos da atividade realizada, isto é, internalizar as externalidades no âmbito do negócio. A esta nova análise, mais abrangente, que reconhece a necessidade de se avaliar os impactos sociais e ambientais impostos à sociedade, denomina-se Avaliação Socioambiental.

A principal característica da Avaliação Socioambiental é quantificar as externalidades e transformar esses valores em termos monetários. Essa tarefa não é nem um pouco trivial, pois, como advoga a teoria econômica, as externalidades são oriundas das chamadas “falhas de mercado” que, como o próprio nome explica, são circunstâncias em que a livre iniciativa de mercado não consegue atuar, ou seja, a alocação de recursos não ocorre de maneira ótima. Esta falha, muitas vezes, está ligada à própria dificuldade de se determinar preços para certos bens, como é o caso da poluição, por exemplo.

A importância das externalidades na economia decorre da sua capacidade de incentivar a realização de certas atitudes que prejudicam a sociedade ou parcela significativa desta, em consequência da distorção causada pela falha na alocação de recursos.

O economista Lester Brown1 mostra como o preço do galão de gasolina nos EUA seria muito mais alto se fossem internalizadas as externalidades geradas na sua produção: lá, o preço da gasolina na bomba estava acima de US$ 2 por galão2 em meados de 2005. Esse preço refletia apenas os custos de extração do petróleo, seu refino em gasolina e sua distribuição para os postos de abastecimento. Nesse preço não estavam incluídos os custos provenientes dos subsídios à indústria petrolífera, como permissão de exploração do petróleo; os subsídios para a extração, produção e seu uso; os imensos custos militares para a proteção ao acesso à oferta de petróleo; os custos de saúde provenientes dos tratamentos de doenças respiratórias, desde asma até enfisema; e, mais importante, o custo da mudança climática.

Se a estes custos, que em 1998 foram calculados pelo Internacional Center for Technology Assessment em US$ 9 por galão de gasolina queimada para os EUA, fossem adicionados aos US$ 2 de custo da produção da gasolina em si, os motoristas pagariam cerca de US$ 11 por galão de gasolina na bomba. Encher um tanque de 20 galões custaria US$ 220. Na realidade, a gasolina queimada é muito dispendiosa, mas o mercado nos diz que é barata, levando a distorções brutais na estrutura da economia. O desafio proposto aos governos é agregar tais custos no preço de mercado, mediante cálculo e incorporações sistemáticos, como se fossem impostos sobre o produto, para deixar claro que os preços em si refletem o custo total para a sociedade.

Embora a Avaliação Socioambiental tenha como vantagens auxiliar o setor privado a melhor direcionar sua produção em torno do desenvolvimento sustentável e ajudar o setor público a melhor decidir sobre que projetos implementar, a obtenção de enormes lucros socioambientais não garante que haja recursos suficientes para sua efetivação.

Para a entidade particular, mesmo diante de um alto retorno socioambiental, somente serão executadas novas formas de atuação se isto não significar diminuição do lucro econômico-financeiro. Já para o ente estatal, a decisão em torno de um empreendimento de grande repercussão socioambiental depende, mesmo que em segundo plano, da capacidade orçamentária do Tesouro de financiar os investimentos necessários para o êxito do projeto.

Em outras palavras, os benefícios socioambientais não são fluxos financeiros, isto é, não se está tratando de dinheiro propriamente dito. Constituem-se de externalidades quantificadas e valoradas conforme uma unidade monetária, para que sirva de comparação entre os montantes econômico-financeiros e os socioambientais. Por exemplo, o Metrô de São Paulo disponibiliza no seu relatório anual os lucros econômico-financeiros e os lucros socioambientais referentes ao ano de exercício. Em 2011, o prejuízo econômico-financeiro foi de R$ 134 milhões, sem levar em conta subsídios e depreciações. Os benefícios socioambientais, por seu turno, revelaram um montante de R$ 6,44 bilhões (Balanço Social). Isto significa que a Avaliação Socioambiental, confrontando os dois valores, corresponde a um valor de R$ 6,31 bilhões, ou seja, o serviço de transporte prestado para a sociedade por meio do Metrô é altamente rentável. Neste caso, o Poder Público subsidia o transporte metroviário para equilibrar as finanças, mas isto não ocorre a esmo e sim pelo fato de este aporte resultar em um bem estar para a população muito maior do que o custo incorrido, em termos monetários.

Em síntese, a avaliação da importância do transporte hidroviário só pode ser feita adequadamente se avaliadas com rigor as externalidades positivas dele decorrentes, comparadas com as externalidades negativas do modo concorrente.

Para melhor análise, estabeleceremos algumas comparações de custos diretos e indiretos que nos facilitam a compreensão do que vem sendo afirmado.

Indicadores de resultados comparados

Como primeira comparação, tomemos o argumento frequente de que o transporte por caminhão é mais rápido e se faz porta a porta.

É verdade. Mas qual a vantagem de transportar cargas, por exemplo, rapidamente, sem levar em conta os custos envolvidos? Essa rapidez se dá, frequentemente, à custa de acidentes muito graves, piorando quando se quer trazer para dentro da cidade caminhões de grande porte, muitos dos quais mal mantidos e com cargas desequilibradas. Mas, além disso, é usual o motorista realizar jornadas de 15, 20 horas ou mais, sem descanso, tomando remédios para não dormir. Não é de estranhar que, segundo pesquisa feita por uma concessionária de rodovias em São Paulo, 45% dos motoristas examinados eram portadores de doenças cardíacas e/ou diabetes. Quanto custa isso?

Um barco autopropelido de 4.400 t transporta tanto quanto 110 vagões ferroviários de 40 t ou 220 caminhões de 20 t. É de se acrescentar que 220 caminhões, com 20 metros de comprimento e 80 m de espaçamento entre eles, ocupam 22 km de via.

O transporte aquaviário brasileiro

Cinco litros de combustível por tonelada transportada podem produzir:

O transporte aquaviário brasileiro

As demandas energéticas dos vários modos de transporte são:

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Cargas de dimensões excepcionais não exigem dispositivos e horários especiais de transporte, como ocorre nas rodovias.

Custos de Infraestrutura

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A hidrovia no mundo

A análise que aqui se fez refere-se a 54 países que compõem a estatística do Fórum Internacional de Transportes (FIT). Dentre eles, pode-se destacar o conjunto de 28 países da União Europeia (EU), 22 da Europa Ocidental (EOC) e 15 da Europa Central (EC). Também estão na composição FIT, 31 países congregados pela OCDE. A fonte de dados mais completa é, assim, o FIT, que hoje engloba países com estatísticas até pouco tempo atrás mal conhecidas, como é o caso da China.

Mas é necessário, nas análises, reconhecer (nos gráficos a seguir) que China, Índia, Rússia e EUA representam, no total das cargas ferroviárias, rodoviárias, hidroviárias e dutoviárias, que somam 22 bilhões de t.km, algo como 83,4%. A União Europeia exerce 9,9% dos transportes FIT e a OCDE responde por 39,5%.

Estas desigualdades respondem, também, por distorção na distribuição modal: enquanto o total dos transportes por vias navegáveis representa, na estatística dos 54 países FIT, 10,7% do total, quando se excluem os quatro países mencionados desse total, o emprego da navegação cai para 3,9%. O mesmo ocorre com o transporte ferroviário de cargas, que nas estatísticas FIT representa 37%, e quando se excluem China, Índia, Rússia e EUA essa participação cai para 25,2%. Disso resulta que a participação do modo rodoviário responde por 68,4% do total das cargas FIT, menos os citados quatro países e 42% no total dos 54 países FIT.

Vias navegáveis, nas duas hipóteses em análise, respondem por 10,7% das cargas FIT, com tendência a crescer, e 3,9% quando se excluem China, Índia, Rússia e EUA, com tendência declinante.

Observa-se, assim, que a tendência histórica de elevada participação do modo rodoviário nos transportes se acentuou nos últimos tempos, particularmente devido aos registros relativos à China e à Índia, embora continue crescendo – em menor ritmo – na União Europeia, OCDE e EUA. Análises mais detalhadas podem ser feitas a partir do relatório Evolução dos Transportes (1970 – 2010), de responsabilidade do FIT (Fórum Internacional dos Transportes) e da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Muitos países estão reagindo ao predomínio do transporte rodoviário, por reconhecer que a sua aparente eficiência econômica resulta do desconhecimento das externalidades negativas pela qual paga todo o globo terrestre, particularmente no campo dos problemas ambientais e de saúde pública. E, nessa direção, o transporte aquaviário oferece muitas vantagens, como as que estão listadas no documento Dez Boas Razões para Preferir a Navegação Fluvial, editado por VZW Promotie Binnemvaart Vlaandeven – Bélgica (veja no Box).

Tomada de posição importante em relação à redistribuição modal dos transportes é o documento NAIADES – Navigation And Inland Waterway Action and Development in Europe, da União Europeia, que traça um conjunto de recomendações para ações a realizar entre 2006 e 2013, visando forte incremento à navegação fluvial, que vem motivando muitos países a promover uma nova distribuição modal, mais econômica, ecológica e sustentável.

O transporte aquaviário brasileiro

A hidrovia no Brasil

O Brasil possui uma das maiores redes de cursos d’água do mundo, dos quais 8.500 km são hidrovias em uso comercial regular, sendo 5.700 km na região amazônica. Estima-se em 30.000 km a extensão naturalmente navegável, podendo chegar a 60.000 km com investimentos relativamente moderados. Em linhas gerais, 13.000 km de vias naturalmente navegáveis tem algum aproveitamento, incluindo a extensão em uso comercial (ver A Hora das Hidrovias).

O transporte aquaviário brasileiro

Fonte: Ministério dos Transportes

A despeito dessa disponibilidade, a matriz de transportes do Brasil, segundo o documento Diretrizes da Política Nacional de Transporte Hidroviário, elaborado pelo Ministério dos Transportes (outubro 2010), indica uma participação das hidrovias de apenas 4%, contra os 58% realizados pelo modo rodoviário.

Levando em conta o transporte marítimo de cabotagem, o Ministério indica que o modo aquaviário não ultrapassa 13% de participação na matriz brasileira, ao mesmo tempo em que prevê, para o ano de 2025, uma participação de 29%, quando então o modo rodoviário passará a participar com 33%, através de 205 intervenções hidroviárias, a um custo de R$ 15,8 bilhões. O estudo em desenvolvimento no Ministério dos Transportes compreende toda a rede fluvial e lacustre, com ênfase nos rios Amazonas e demais afluentes, Madeira, Araguaia/Tocantins, Juruena/Teles, Pires/Tapajós, Parnaíba, São Francisco e Tietê/Paraná, Paraguai e Taquari/Jacuí.

Embora de dimensão aparentemente muito grande, o investimento previsto em R$ 15,8 bilhões poderá ter retorno a curto prazo. Com efeito, os empreendimentos previstos poderão gerar economias anuais da ordem de R$ 10,7 bilhões, proporcionando ao investimento um retorno em 18 meses (vide Consequências do Uso Inadequado dos Diferentes Modos de Transporte – blog www.adrianobranco.eng.br, em 14/10/2011).

Apontando apenas algumas da vantagens econômicas do modo hidroviário sobre o rodoviário, o estudo federal diz que o primeiro apresenta, em relação ao segundo, eficiência energética 29 vezes superior, consumo de combustível 19 vezes menor, além de emitir seis vezes menos CO2 e 18 vezes menos NOX.

Por conta dessa visão mais realista dos problemas do transporte, o Brasil vem se dedicando mais profundamente aos planos hidroviários que poderão, de fato, trazer grandes economias ao país, melhorando-lhe substancialmente a competitividade no campo internacional. Poderão, outrossim, materializar projetos de integração continental, como a sonhada ligação fluvial entre as bacias dos rios da Prata e do Orinoco.

Focalizando o estado de São Paulo, deparamo-nos com uma matriz de transportes mais extravagante do que aquela do Brasil, a despeito do grande investimento que o estado fez na implantação da Hidrovia Catullo Branco (Tietê-Paraná), mas com baixo aproveitamento. Com efeito, a hidrovia do Tietê foi prevista para um transporte de 20 milhões de toneladas por ano, mas não tem operado com mais de 6 milhões de t.

Segundo os dados de 2007, era a seguinte a distribuição modal dos transportes em São Paulo, comparada com as do EUA e do Brasil:

O transporte aquaviário brasileiro

No Plano Estratégico Hidroviário do Estado de São Paulo, de 2004, admite-se chegar, em 17 anos, a uma participação do modo hidroviário na matriz de transportes equivalente a 6%. Tal previsão baseou-se no uso intensivo da Hidrovia Tietê-Paraná e o desenvolvimento de novas hidrovias, aproveitando principalmente os rios limítrofes do estado, que tem barragens reguladoras dos cursos d’água, desprovidas, entretanto, de eclusas. É especialmente importante para o estado de São Paulo a construção da eclusa de Itaipu, que permitirá a navegação pelo Rio Paraná até a Bacia do Prata.

Um primeiro resultado do Plano Estratégico está em pleno curso: o projeto da Transpetro de transportar etanol na Hidrovia Tietê-Paraná, já comentado no capítulo Construindo Hidrovias, na primeira parte deste artigo, e que confirma as previsões anteriores de capacidade do sistema. Presentemente, analisa-se não só a possibilidade de ampliação do transporte de álcool, como do atendimento de outras demandas, como o transporte do açúcar, produto de extrema ligação com o etanol. Mas também se cogita de transportes que assegurem frete de retorno, como seria o caso da distribuição de derivados de petróleo, no sentido inverso ao do álcool.

Ao longo dos estudos de capacidade do sistema hidroviário do estado de São Paulo, houve uma dedicação aos conceitos de balanço social, mencionados no capítulo Por que Hidrovias?, também na primeira parte deste artigo. Os cálculos correspondentes resultaram bastante significativos, avaliando-se benefícios sociais advindos da economia de combustível, redução de acidentes e de poluentes por um período de 17 anos, em que se admitiu um crescimento do transporte fluvial do estado equivalente a 23 vezes, elevando a participação do modo hidroviário na matriz dos transportes, de 0,5% para 6%.

O quadro seguinte, referente aos benefícios sociais estimados no período 2004/2020, indica não só a possível previsão do aumento do transporte hidroviário no estado de São Paulo, como apresenta a somatória de alguns benefícios sociais dela decorrentes. Trata-se de previsão incompleta, já que é possível elencar muitos outros indicadores de benefícios que podem ainda ser agregados ao estudo, como aumento de produtividade em setores da economia, diminuição do roubo de cargas e de ruídos, melhoria da qualidade de vida e até a antecipação dos problemas futuros como o gradativo esgotamento e encarecimento dos combustíveis. Mesmo sem levar em conta tais fatores, apontou-se uma economia de R$ 9 bilhões ao longo do período analisado (valores de 2004).

O transporte aquaviário brasileiro

No quadro seguinte, de produção do transporte hidroviário no estado, pode-se ver a tendência de crescimento das cargas usuais, ainda não computado o transporte de etanol pela Transpetro.

O transporte aquaviário brasileiro

Conclusões

1. Nenhum modo de transporte tem experiência tão longa e tão bem-sucedida como o hidroviário.

2. A sua substituição por outros modos, de menor eficiência, se deveu a modismos, que não levaram em conta os verdadeiros custos diretos e indiretos.

3. Esse movimento de “modernização” se deveu à adesão sub-consciente ao conforto, representado por novos modos, mas também, e principalmente, aos interesses de grandes potências e de grandes consórcios empresariais que exploraram o petróleo de países pobres e desenvolveram uma poderosa indústria de veículos.

4. As questões ambientais, suscitadas nos últimos 30 anos, trouxeram à superfície os prejuízos socioambientais embutidos nos meios de transporte mais recentes. É de fundamental importância tomar decisões com base nas Avaliações Socioambientais e não apenas na tradicional equação “custo-benefício”.

5. O conhecimento das externalidades envolvidas na avaliação dos modos de transporte é condição para a sua correta adoção. O uso múltiplo das águas é um dos melhores exemplos de adoção de critérios corretos na avaliação dos empreendimentos combinados.

6. É indispensável reconhecer nossos legítimos interesses, em contraste com os de terceiros, na definição das infraestruturas de apoio ao desenvolvimento brasileiro. O projeto da Bacia Tietê-Paraná veio ao encontro dos interesses nacionais; Tucuruí, Itaipu e tantos outros que têm sido desenvolvidos ao arrepio do conceito de uso múltiplo das águas devem ser reformados ou abolidos.

7. O Brasil começa a enxergar os caminhos alternativos ao transporte rodoviário. Entretanto, os maiores investimentos em transporte ainda estão voltados para as rodovias, sem nenhuma avaliação socioambiental.

8. É absolutamente racional o estudo da Matriz de Transporte contida no PNLT – Plano Nacional de Logística de Transportes – que aponta, para o horizonte de 2025, a participação em 29% do modo aquaviário na matriz brasileira de transportes, do modo ferroviário em 32% e do rodoviário em 33%.

9. A experiência europeia relativa à implantação de canais navegáveis, que permitiu a formação de uma importante rede de navegação fluvial, deve ser repetida em várias regiões, particularmente no Brasil, que possui extensa malha de rios e lagos. Nesse particular, a proposta de implantação de uma hidrovia transcontinental, ligando as bacias dos rios da Prata e Orinoco, não é um mero sonho, mas sim uma visão avançada dos transportes e da geopolítica regionais.

Adriano Murgel Branco

Administrador e engenheiro eletricista formado pela universidade Mackenzie.

Foi consultor no Brasil e Moçambique, professor universitário e ocupou vários cargos públicos, entre eles o de secretário da Habitação e secretário dos Transportes do estado de São Paulo nos anos 1980.

Tel.: (11) 5044-2766

ambranco@uol.com.br 

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