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Estradas de ferro ou de papel? Alguns insights sobre as oportunidades e desafios regulatórios das autorizações ferroviárias

Após a primeira onda de contratos de autorização assinados, vivenciamos momento de busca por desenho regulatório que permita uma convivência ótima entre a liberdade econômica da autorizatária, o incentivo para efetiva implementação de ferrovias autorizadas e a preservação dos direitos das concessionárias
Por Mariana Avelar em 5 de julho de 2022 às 10h00 (atualizado em 06/07/2022 às 13h49)
Mariana Avelar

As discussões sobre a regulamentação do novo marco das ferrovias avançam na ANTT, especialmente por conta das audiências públicas de nº4/2022 e nº 5/2022, que cuidam, respectivamente, do aprimoramento da minuta do Contrato de Adesão para formalização de outorgas por autorização para exploração de ferrovias e da proposta de regulamentação do art. 25 da Lei Federal nº 14.273/21, que trata do processo e dos requisitos para autorização para exploração de ferrovias. 

No texto de hoje, proponho algumas reflexões sobre o tema, partindo da seleção das contribuições sociais mais relevantes já endereçadas à ANTT.

Contexto geral

O procedimento de autorização passará a ser capitaneado pela agência reguladora e não mais pelo Ministério da Infraestrutura, que era responsável por analisar e deferir outorgas ao tempo da vigência da Medida Provisória 1.065 (MP 1.065).  

Apesar da mudança, durante a sessão pública realizada em 22 de junho de 2022, a Superintendência de Transporte Ferroviário da ANTT sintetizou as principais características da regulamentação proposta, reafirmando compromisso em manter a essência do procedimento e contratualização das autorizações outorgadas com fundamento na MP 1.065 e na Portaria 131 do Ministério da Infraestrutura. 

Há que se cuidar, contudo, para que essa premissa não impeça a necessária evolução e aprimoramento do modelo. 

Ainda na condução da sessão pública, o Superintendente Ismael Trinks destacou que a proposta de regulamentação visa abranger tão somente a autorização para ferrovias greenfield, deixando para momento futuro a regulamentação do processo de chamamento público para autorização de ferrovias não implantadas, ociosas ou em processo de devolução e desativação.

Em relação aos requisitos do pedido de autorização, algumas escolhas regulatórias relevantes foram apresentadas no contexto da análise de impacto regulatório:

Indicação de fontes de financiamento pretendidas: Alternativa 2 – estabelecer a necessidade de indicação da estrutura de capital dos recursos financeiros e a natureza das fontes de financiamento pretendidas. Nesta alternativa, a requerente informaria se pretende uti lizar recursos financeiros próprios ou de terceiros e, caso pretenda uti lizar capital de terceiros, a depender do modo pretendido para sua obtenção, caso seja mediante instituição financeira, se esta seria pública ou privada;

Rol de certidões de regularidade fiscal da requerente: Alternativa 3 – elencar rol completo de documentos a serem apresentados. Nesta alternativa, a requerente apresentaria documentação semelhantemente ao solicitado pelo MINFRA no âmbito da Medida Provisória nº 1.065, de2021;

Requerimento de autorização ferroviária que se sobrepõe à faixa de domínio de ferrovia já requerida: Alternativa 2 – apresentar dispositivo específico na regulamentação, detalhamento e realizando a remissão aos critérios para seleção do projeto. Nesta alternativa, haveria previsão normativa constando que caso não haja solução do conflito, a ANTT decidiria qual o projeto mais convergente ao interesse público, tomando porb ase as diretrizes insculpidas na própria lei, podendo, para tanto, solicitar documentação complementar às requerentes;

Casos de negativa de autorização por motivo técnico-operacional relevante: Alternativa 2 – apresentar detalhamento ou rol exemplificativo dos motivos que ensejariam negativa de autorização. Nesta alternativa, seria apresentado maior detalhamento do que se entende como motivo técnico-operacional e um rol não taxativo de tais hipóteses, que poderiam justificar negativa de autorização.

Passo então a analisar a aplicação de algumas dessas premissas na regulamentação proposta.

Separando o joio do trigo

Diversos players ressaltaram preocupação com a ação de candidatos aventureiros, que venham a pleitear a autorização sem a firme intenção de implementar a ferrovia, ou ainda, sem qualquer avaliação de sua viabilidade econômica e técnico-operacional.

Como possível resposta para coibir tais comportamentos chegou-se a sugerir a apresentação de estudos prévios robustos (tema polêmico, considerando o veto ao dispositivo legal que o exigia) bem como o aprimoramento dos parâmetros de exigibilidade das obrigações contratuais e de responsabilização da autorizatária.

Nos parece essencial, como já destacado por Vitor Soliano, que a regulamentação dê concretude à atribuição da agência reguladora para analisar a compatibilidade dos requerimentos de autorização com a política pública do setor ferroviário, tal como endereçado pelo novo marco legal das ferrovias. 

Apesar disso, a atual regulamentação ainda está bastante focada em aspectos formais que não necessariamente serão capazes de conduzir a celebração de contratos com os parceiros mais aptos. O destaque ao tema da regularidade fiscal na minuta de resolução proposta é um indicativo dessa tendência.

Entendo que a atuação da agência reguladora deverá primar pela proporcionalidade das exigências regulatórias, considerando a tensão entre a liberdade econômica da autorizatária, o incentivo para efetiva implementação de ferrovias autorizadas e a preservação do valor das concessões já em operação.

Viabilidade locacional

O art.6º da minuta de resolução proposta indicou que em caso de incompatibilidade locacional ou motivo técnico-operacional relevante, a requerente deve apresentar solução técnica adequada para o conflito. Se não houver resposta no prazo de 60 dias ou se a resposta apresentada não possibilitar a implantação de ambos os empreendimentos, a ANTT decidirá qual requerente terá preferência na outorga de autorização, com base nos arts. 4º e 5º, da Lei nº 14.273, de 2021.

Logo, preferiu-se conferir discricionariedade à ANTT em detrimento de outras soluções existentes – a exemplo do chamamento público utilizado no setor portuário para casos de inviabilidade locacional envolvendo autorização para construção e exploração de instalação portuária localizada fora da área do porto organizado.Esse ponto chegou a ser aventado na análise de impacto regulatório, mas sem grande aprofundamento. 

Considerando a ausência de precedentes no setor ferroviário e o intuito de reduzir a futura litigiosidade na aplicação do novo marco legal, o diálogo com outros setores regulados, sobretudo o portuário, seria de grande valia para o deslinde dessa questão.

Endereçamento da assimetria regulatória entre autorizatária e concessionária

O estabelecimento de limites para a assimetria regulatória entre concessionárias e autorizatárias e até mesmo entre diferentes tipos de autorização é um dos temas que demandam maior atenção por parte da agência, especialmente porque seus efeitos não foram, até o momento, considerados na análise de impacto regulatório realizada.

Camila Rodrigues Costa, gerente jurídica da ANTF, endereçou o tema com precisão durante a sessão pública conduzida pela ANTT, destacando a importância da redução do fardo regulatório incidente sobre as concessionárias.

De outro lado, o advogado Leonardo Coelho Ribeiro propôs que a intensidade dos influxos regulatórios seja adequada ao tipo de ferrovia autorizada, destacando que a autorização é gênero que comporta ferrovias de perfil diverso – o que poderia ensejar a estipulação de um fator de assimetria regulatória entre os tipos de outorga que considere a vocação da ferrovia, seu tipo de carga e até mesmo as regras aplicáveis para compartilhamento de infraestrutura. O grau de intensidade da regulação em relação a diferentes situações poderia assim permitir que inovação no setor ocorra sem gerar cenário de disfunção sistêmica. 

Em adendo, considero que a regulamentação deveria endereçar o tema da adaptação de contratos de concessão em autorizações. A adaptação é uma das medidas disciplinadas pelo novo marco legal para evitar o desequilíbrio concorrencial entre os dois sistemas de exploração. Não se trata de medida que visa esvaziar as concessões, mas sim que busca conferir segurança jurídica aos concessionários considerando ainda que, em certas situações, adaptar o contrato pode ser mais benéfico para o serviço público já em operação. 

Em outras palavras, o processo de adaptação funciona como remédio a permitir que a coexistência entre concessionárias e autorizatárias seja a mais harmônica possível, sobretudo para que não se implementem assimetrias regulatórias injustificadas.

Aprimoramentos à minuta de contrato de adesão

Como antecipado, a minuta de contrato de adesão para outorga de autorização proposta pela ANTT foi largamente inspirada naquela utilizada para celebração dos contratos de autorização celebrados sob a égide da MP 1.065, tendo sido alterada, contudo, para abarcar o novo papel da ANTT (de interveniente a contratante) além de trazer novas colocações sobre o tema das desapropriações e da resolução de conflitos,  dentre outros aspectos.

Na tabela abaixo, sintetizo alguns dos principais pontos para possível aprimoramento da minuta de contrato atualmente proposta:

Minuta de contrato de adesão

Possível aprimoramento

Cláusula 1.3 - A ANTT poderá anuir com a atualização do traçado da Ferrovia autorizada em decorrência da necessidade de atendimento de exigências, tais como:

I - licenciamento ambiental;

II - conformação a plano diretor municipal ou plano de desenvolvimento urbano integrado;

III - motivadas por fato do príncipe, caso fortuito ou força maior; e

IV - atendimento aos aspectos de segurança ou eficiência operacional.

 

A regulamentação não apresenta diferenciação entre a simples atualização do traçado (que é quase inevitável no desenvolvimento do empreendimento, com o respectivo aprofundamento do nível de projeto) de verdadeira alteração do traçado. A exigência de autorização é compatível com o último cenário, sendo que os casos de mera atualização, que não provoquem impacto na lógica da viabilidade locacional do empreendimento, poderiam ser tão somente informadas ao regulador, desburocratizando a gestão contratual das autorizações.

Cláusula 2.3 - A autorização é outorgada em caráter personalíssimo, sendo permitida a transferência de sua titularidade a terceiros mediante prévia autorização da ANTT

2.3.1. Considera-se como transferência de titularidade as operações de cisão, fusão, incorporação e formação de consórcio, exceto quando a

AUTORIZATÁRIA for a incorporadora.

2.3.2. Na transferência de titularidade, deverá ser observada a preservação do objeto e demais condições originalmente estabelecidas, bem como o atendimento, por parte do novo titular, dos requisitos necessários à obtenção da autorização.

2.3.3. A transferência de controle societário da AUTORIZATÁRIA

depende de anuência da ANTT.

A caracterização da autorização como contrato personalíssimo não encontra embasamento no arcabouço legal e doutrinário. 

A exigência de prévia anuência para transferência de titularidade de anuência até mesmo para transferência de controle societário acabou por impor regime mais rígido que aquele aplicável às concessões ferroviárias exploradas em regime público, o que não se justifica.

Cláusula 10.4. Fica estabelecido, a título de penalidade, 30% do valor de mercado do imóvel desapropriado na hipótese de não ter sido dada a destinação do imóvel à prestação do serviço de transporte ferroviário, ou quando houver desativação de trecho/área obtidos mediante desapropriação.

A cláusula, ainda que tenha intensão de evitar o abuso na utilização da desapropriação, desconsidera que o próprio regime desapropriatório cuida dos casos de tredestinação ilícita dos bens desapropriados.

A previsão de multa nesses termos pode gerar efeito contrário do desejado, transformando-se em simples conta de chegada para quem deseje praticar o desvio de finalidade descrito.

Cláusula 16. MODO DE SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE DIVERGÊNCIAS CONTRATUAIS

16.1. As partes poderão resolver por meio de mediação as controvérsias e/ou disputas decorrentes do Contrato e seus Anexos, nos termos da Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015 e da regulamentação específica da ANTT.

Cláusula 17. DO FORO

17.1. Para dirimir controvérsias jurídicas decorrentes do presente Contrato as partes elegem o foro da Justiça Federal - Seção Judiciária do Distrito Federal, com exclusão de qualquer outro, por mais privilegiado que seja.

A redação da minuta parece impor a adoção de foro de eleição mesmo para contratos que tenham feito a opção por mecanismos alternativos de solução de controvérsia. 

A Nota Técnica que acompanha a minuta de contrato, ao esclarecer a disposição, indicou que “a principal diferença com a redação anterior e, especialmente, com a redação do Contrato de Adesão oriundo da MP nº 1.065/2021, é que não há um direcionamento prévio ou uma obrigação de solucionar os conflitos por intermédio de mediação e arbitragem. Neste senti do, afigura-se mais adequado que a referida decisão seja tomada pelas partes, caso a caso.

 

A disposição, contudo, poderá implicar no esvaziamento do uso da mediação e da arbitragem, em possível prejuízo a atratividade dos empreendimentos autorizados.

Para que as autorizações cumpram a missão de expandir o modal ferroviário na matriz de transportes brasileiras, é preciso mais que simplesmente acelerar o processo para assinatura de contratos de adesão.  

A boa regulamentação, que inspire segurança jurídica e incentive investimentos, é fundamental para afastar o risco de que as autorizações se tornem ferrovias de papel, ou pior, que acabem por gerar insegurança jurídica que desincentive os empreendimentos ferroviários já em operação.

Estradas de ferro ou de papel? Alguns insights sobre as oportunidades e desafios regulatórios das autorizações ferroviárias
Mariana Avelar, advogada da Manesco Advogados

 

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