Os governos devem aprovar nesta semana o primeiro esquema global de precificação de carbono voltado ao transporte marítimo. Trata-se do Marco Regulatório Net-Zero (IMO NZF), elaborado pela Organização Marítima Internacional (IMO), agência da ONU responsável pela regulação da navegação mundial.
O texto foi aprovado em abril com o apoio de 63 países, entre eles Brasil, Índia, China, Japão, Reino Unido e os 27 países da União Europeia. Os Estados Unidos votaram contra e, desde então, têm atuado para dificultar o consenso sobre a implementação do marco.
A proposta está sendo discutida em Londres, de 14 a 17 de outubro, durante a Sessão Extraordinária do Comitê de Proteção do Meio Marinho (MEPC E.2), e será seguida por novas rodadas técnicas até o final do mês.
Um marco para a transição energética global
O IMO NZF é a estrutura acordada pelos países para colocar em prática o plano de transição energética do transporte marítimo, aprovado em 2023. A medida é considerada crucial no combate à mudança climática, já que a navegação é um dos maiores emissores de gases de efeito estufa do planeta. Se fosse um país, o setor seria o 6º maior emissor de CO₂ e o 5º maior consumidor de combustíveis fósseis do mundo.
A decisão esperada na IMO é vista como a maior vitória da diplomacia climática em anos, por estabelecer a primeira norma global e juridicamente vinculante de precificação de carbono em um setor internacional.
Mais do que um avanço técnico, o acordo representaria um golpe direto na demanda futura por petróleo e um sinal político poderoso às vésperas da COP30, que será realizada em Belém (PA), de que o multilateralismo climático ainda pode gerar resultados concretos.
Estrutura e objetivos do IMO NZF
O Marco Regulatório Net-Zero é composto por dois pilares integrados:
Nessa categoria, ganham destaque os biocombustíveis avançados e os e-fuels (combustíveis sintéticos neutros em carbono), considerados soluções promissoras para atender às exigências energéticas da navegação de longo curso.
A expectativa é que o NZF estimule investimentos em combustíveis limpos e infraestrutura portuária de baixo carbono, abrindo uma nova etapa de competitividade sustentável no transporte marítimo global.
Combustíveis controversos e críticas ambientais
Apesar do amplo apoio, há preocupações sobre o alcance e a integridade ambiental do marco.
Entre especialistas e organizações ambientais, o principal temor é que o NZF acabe incluindo combustíveis insustentáveis, como o Gás Natural Liquefeito (GNL), frequentemente promovido como alternativa “mais limpa”.
“O GNL deve ser excluído do Marco de Emissões Zero, ou a IMO corre o risco de promover uma falsa solução e comprometer sua credibilidade climática”, alerta Elissama Menezes, diretora da Equal Routes.
Segundo ela, as emissões de metano — gás de efeito estufa 82 vezes mais potente que o CO₂ — provenientes de embarcações movidas a GNL aumentaram 180% entre 2016 e 2023, contrariando o discurso da indústria sobre combustíveis de transição. “O GNL é fundamentalmente incompatível com as metas de descarbonização do setor marítimo”, completa Menezes.
Vozes das nações insulares
Para os países insulares, os mais vulneráveis à crise climática, o Marco Net-Zero é considerado pouco ambicioso.
Muitos se abstiveram da votação de abril, cobrando metas mais rigorosas e prazos mais curtos para a eliminação de emissões no transporte marítimo.
Simon Kofe, ministro da Justiça, Comunicação e Relações Exteriores de Tuvalu, reforçou a posição das nações do Pacífico durante a sessão em Londres:
“Enquanto as nações maiores e mais ricas debatem a ameaça aos meios de subsistência, os países das ilhas do Pacífico são obrigados a considerar a ameaça à vida e à própria existência do Estado. Essa é a dimensão do que está em jogo.
Estamos aqui [na IMO] para liderar com alta ambição, como sempre fizemos. Nossa abstenção na MEPC 83 foi um sinal: Tuvalu não irá carimbar resultados fracos.
Nesta Sessão Extraordinária, conclamamos todas as delegações a traçar um rumo em direção a uma transição justa e equitativa. Trata-se de mais do que transporte marítimo. Trata-se de sobrevivência. A IMO precisa encontrar coragem para entregar resultados desta vez.”
Apoio da indústria e próximos passos
A indústria naval apoia a adoção do marco por meio do World Shipping Council (WSC), que reúne mais de 180 empresas globais de navegação. Segundo a entidade, o NZF é essencial para garantir segurança regulatória internacional, condição necessária para destravar investimentos e dar previsibilidade à transição energética do setor.
A sessão desta semana será seguida por uma rodada técnica (ISWG-GHG-20), de 20 a 24 de outubro, na qual serão definidos parâmetros operacionais do sistema. Aspectos políticos e financeiros mais complexos devem ser finalizados até 2026, com entrada em vigor prevista para 2027.
Entre os temas pendentes estão a definição das recompensas para tecnologias de emissão zero e o destino dos recursos arrecadados, estimados em US$ 15 bilhões anuais a partir de 2030.
A visão dos especialistas
Nishatabbas Rehmatulla, pesquisador sênior do UCL Energy Institute, destacou:
“A clareza que virá com a adoção do Quadro Net-Zero não deve ser subestimada. Esse sinal político tem potencial para destravar bilhões de dólares em investimentos na produção de combustíveis escaláveis de emissão zero. Apenas com sua adoção imediata a IMO terá chance de atingir as metas da Estratégia Revisada de GEE — que prevê que combustíveis de zero ou quase zero emissões representem de 5% a 10% do total até 2030.”
Davina Hurt, diretora de Política Climática da Pacific Environment, afirmou:
“Independentemente da posição dos Estados Unidos, os países devem manter-se firmes e levar o Quadro de Net-Zero até a linha de chegada em outubro. O acordo de abril é uma vitória para o clima, a saúde e os oceanos, marcando a primeira vez em que a indústria naval concorda com um preço global de carbono. Agora é preciso concretizá-lo — não apenas pelo planeta, mas pelo legado que devemos às futuras gerações.”
Elissama Menezes, diretora da Equal Routes, reforçou:
“Antes da votação do Quadro Net-Zero, os fatos são claros: o GNL não é uma solução viável. As emissões de metano aumentaram 180% entre 2016 e 2023, o que contradiz a narrativa da indústria. O GNL deve ser excluído do marco, ou a IMO corre o risco de minar sua credibilidade climática.”
Perspectiva africana
Maria Ogbugo, consultora marítima do Africa Policy Research Institute, afirmou:
“O Fundo Net Zero criado sob o Quadro de Net-Zero da IMO oferece uma oportunidade crucial para tornar a transição marítima mais equitativa. Para a África, onde as frotas são limitadas e envelhecidas, e o acesso ao financiamento naval tradicional tem sido escasso, o acesso justo a este Fundo pode permitir a renovação das embarcações e apoiar as ambições do continente no âmbito da Área de Livre Comércio Continental Africana. Para garantir uma transição verdadeiramente justa e inclusiva, é essencial que o desenho do Fundo inclua janelas de financiamento dedicadas às economias em desenvolvimento.”